Temos vivido numa sociedade canina. Por certo que o estresse cotidiano, às vezes, teima em trazer á tona as palavras “vida de cão”. Todavia, cabe, aqui, ser ressaltada a necessidade de expansão do significado desta expressão. Houve, de forma quase imperceptível, uma visível reclassificação das classes sociais. Além das fatídicas categorias que percorrem as primeiras letras do alfabeto – daqui a pouco chegaremos na letra Z –, tem-se agora uma categoria especial, para cachorros, obviamente ainda sem letra capital que a designe oficialmente. Fazendo um apanhado geral, temos, portanto: classes A, B, C, D, E…e “cachorrinho da mamãe”. Por que da mamãe? Minha mãe tem um um, trata ele como filho, meu irmão, portanto. A sua, por acaso, não tem?
Enfim, era uma quinta-feira. E, no ápice da minha adolescência, com minhas espinhas que insistiam em denunciar meus dezesseis anos, tarde de quinta, meu amigo, era dia de jogar um videogame com o pessoal lá da outra rua. Até esse ponto, tudo certo. Não fosse um bramido lá da cozinha anunciar algo contrário à minha vontade: “Luiz Henrique, tenho umas coisas pra fazer no Centro, te dou uma carona até seus amigos.”. Naturalmente isso era uma desnecessidade. Eu não iria longe. Não requeria, em definitivo, de carona alguma. “Não precisa, mãe. É aqui do ladinho.”, falei. Mas mãe é mãe, ao passo que me foi retrucado: “Andar por aí tá muito perigoso, Luiz Henrique, mesmo durante o dia, você sabe disso. E, além disso, podemos aproveitar pra levar a Lufe pra passear um pouco. Acho que ela tá com depressão. Deve ser muito tempo sem ver gente.”. Muito tempo sem ver gente?! Um cachorro?! Mas o que que é isso?! Desde quando cachorro tem depressão? Claro, abramos uma seção no almanaque de psiquiatria devotada aos cãezinhos. O problema é que transtorno depressivo, se num cachorro, nem Freud explica.
Já em frente a casa do Bigode (ele sempre tinha as últimas versões do jogos daquele console que você nunca poderia comprar), minha mãe estacionou o carro próximo ao portão. Com a Lufe no meu colo, suas patas estiradas sobre o vidro quase totalmente aberto, ouvi, com estridência, o latido repetido da doce cachorrinha. Fiquei estático. Eis que minha inércia provocou uma ordenação materna: “Luiz Henrique! Não tá vendo que a Lufe quer descer. Abra a porta pra ela, meu filho.”. Ericei minhas sobrancelhas, fiz covinhas na bochecha, dando forma a uma feição de indignação. Matutei: “Lufe quer que a porta seja aberta para ela, como não fui perceber isso?”. Cedi à solicitação. Abri a porta do carro. Por conseguinte, em última instância, escutei: “Venho te pegar às seis horas, meu filho. A Lufe tem tosa marcada para às cinco horas.”. A Lufe tinha tosa marcada para às cinco. Custava uma fortuna, provavelmente. Para mim, quando precisava cortar o cabelo, era um deus nos acuda para arrancar cinco míseros reais da carteira da minha mãe. Argh!
O futebolzinho na tela da TV estava comendo solto. Quando se é jovem, muitas vezes mesmo adulto, um campeonatinho de futebol no videogame traduz-se em diversão certeira. Contudo, fui descobrir, anos mais tarde, que o acréscimo de cerveja à competição torna tudo mais interessante. Sem álcool, mas com o controle na mão, jogávamos em quatro. Dois jogadores comandando cada lado. “Bigodeira, como faz a pedalada nessa versão mesmo?”. Bigode, sem tirar os olhos da tela, respondeu: “Só manter o gatilho direito pressionado, em seguida aperta no B e dá uma travada no direcional pra cima.”. Ah, garoto! Funcionou. Bigode era realmente um ás dos videogames. Pedalada rolando, zagueiro sendo deixado para trás. Hora de chutar aquela pelota e estufar a rede. No entanto, no momento crucial, fui distraído: “AU! AU! AU! AU!”. Não era possível. Eles haviam retornado ao meu dia, os cachorros. Perdi, logo ali na cara, o gol! Houve reclamações. Engoli os desaforos.
Segundo tempo. Duas horas, e cinquenta latidos, passaram-se desde o início do litígio articulado pelos controles de videogame. Eu e Bigode, definitivamente, formávamos uma ótima dupla, apesar das interrupções incessantes de Bob – a fonte dos “AU! AU!”. Era o último jogo, e estava disputado. “Passa pro Messi, manda pra mim Bigodeira! Pro Messi. Aí!”. Posicionei-me, novamente, na cara do gol. Porém surgiu outro repente: “AU! AU! AU! AU!”. Fiquei consternado. Bradei, com o apoio integral de todos os jogadores presentes: “Porra Bigode, manda o Bob parar de latir! Esses latidos tão acabando com o jogo, cara”. Infelizmente, para a frustração da histeria em massa estabelecida na sala, Bigode, retirando o dedo indicador do botão de chute e o colocando à frente da boca, surpreendeu-nos: “Pessoal, não gritem. O Bob não gosta.”. Maldita vida de cão!
Autor: Lucas Vinícius da Rosa