A vida não se propaga da mesma maneira para todos. Eis que há uma divergência quanto à felicidade e à tristeza de cada espécime humano. Distanciando-se das teorias extraídas de livros de autoajuda, nesta vida de uma dezena de abismos e um dízimo de paraquedas, perambulam etnias de saltadores; há os que pulam mostrando os dentes, sorrindo deverás; outros, chorando; finalmente, tem uma gente que já em piscina rasa se afoga, e de beirada nenhuma se arrisca.
Rubens sabia tinha ciência do raciocínio acima. Seu pai fora um condecorado paraquedista do exército, e havia lhe esclarecido que, diante de uma chuva de balas no céu, não existe quem pule sorrindo durante a queda. Tal esclarecimento promoveu a instalação do trauma: Rubens Almeida Prado, dali em diante, cagar-se-ia nas calças perante os menores riscos; um mísero centímetro de altitude, bastava isso para que fosse imerso em um cenário de guerra, como aquele narrado pelo seu pai.
Aos dezoito anos, ao se alistar nas forças armadas, solicitou aos deuses da macumba que fizessem uma mandinga, livrando-lhe do servimento; sem exército, sem paraquedismo. Outra vez, já aos vinte e dois anos, um amigo ofereceu-lhe um salto das alturas, ideal para iniciantes suicidas. A aventura podia ser adquirida por vinte e três reais, num pacote disponível na Internet. Rubinho, quase cagado, recusou. Queria fazer vinte e três anos.
Rubens vivia em estado de conformação. Realidade pacata, pés no chão, muito propícia aos seguidores das frouxas doutrinas. Cuidava dos pormenores da sua higiene. Não apostava no que poderia perder. Evitava, enfim, situações das quais pudesse despencar.
Cinco anos após a recusa ao salto de paraquedas, enquanto caminhava por uma rua muito plana, Rubens foi surpreendido. A calçada sobre a qual caminhava rompeu-se em duas. Duas placas tectônicas entediaram-se com ele. Chacoalharam suas estruturas rudemente, abrindo uma fenda agressiva na calmaria do jovem. Eis o nome do terremoto: Fernanda D’arc.
Surgida em uma noite de Novembro de 2012, Fernanda era a pólvora do revólver que Rubens jamais empunharia; seria isso, não fosse o ímpeto bravo e destemido daquela. Mulher sem fobias, sumária dispensadora de paraquedas reservas, Fernanda encantava muito pelos cabelos castanhos maravilhosos, e exageradamente pela respiração convicta.
Uma mulher ímpar e um homem par. Um complemento conveniente ao universo dos números; talvez nem tanto à complementação humana.
— Você caiu na minha vida de paraquedas, Fernanda. – Rubens tomou fôlego, cagando-se todo, como costumeiramente fazia. – Case-se comigo. – Fernanda aquiesceu. Titubeou dizer sim. Porém, ela era uma apostadora, e corria seu destino no fio da mais afiada navalha.
— Só caso se você…
— Faço! Faço o que você quiser, meu amor.
— Qualquer coisa? – o candidato a noivo acenou positivamente. – Quero que você pule de paraquedas comigo.
Rubens empalideceu. O sangue correu-lhe a face, em retirada, deixando um semblante muito branco em toda a extensão do rosto. Sentiu seu intestino se manifestar; era seu sobrenome Almeida Prado falando mais alto, rugindo como um leão enfermo, que acabara de comer carne de zebra infectada por larvas.
— Você tá bem, Rubinho, meu lindo? – ele nada respondeu. – Já conversamos sobre encarar desafios, lembra?
— É… – recuperava a voz. – mas….você….sabe do meu medo….
— Do seu medo de altura. Sei sim. E digo que só caso se você vencer esse medo.
Seguidas duas semanas, Rubens encontrava-se seiscentos reais empobrecido. A promoção de outrora, anos antes, de vinte e três reais, fracassara diante da morte de dois paraquedistas iniciantes, que confundiram a corda do paraquedas com a de soltura da mochila; vida traiçoeira, estes pularam sorrindo, mas aterrissaram sem dentes.
No dia do salto, pela manhã, Rubens não quis irritar seu intestino. Seu trato digestório era muito temperamental ao acordar. Ela, imune a caganeiras e intempéries menores, comeu ovos fritos, bacon e pão com doce de leite. Como eram água e vinho aqueles dois, e Fernanda D’arc embriagava, e como embriagava, o cérebro hidratado do seu companheiro.
Ainda de manhã, dirigiram-se para a zona de salto. Era um lugar afastado da cidade, longe de quaisquer testemunhas de uma tragédia eventual.
Assim que chegaram, foram recebidos por dois homens, muito fortes e seguros. Um era negro, demasiado alto, chamava-se Pequinês. Ao outro cabia uma descrição sedutora, dada sua cidadania europeia e uma indistinguível feição Casanova.
Fernanda isentou-se das instruções de salto iniciais. Mas tapou somente os ouvidos, ao passo que pregava os olhos em Casanova. Seu parceiro, todavia, escutava atentamente cada orientação passada. Quando não tremia, roía as unhas. Findas as unhas, agarrou a mão da sua futura esposa, e apertou-a com força.
— Vai dar tudo certo, meu amor. – ela garantiu, com voz audível.
Ao escutar tais palavras, o instrutor Pequinês interpelou. Aproximou-se de Rubens. Tocou-lhe o ombro esquerdo, muito levemente.
— Rubens, já realizei mais de 1000 saltos em minha carreira. E nunca houve acidentes. – esses dados trouxeram-lhe estranheza. Lembrou-se dos paraquedistas iniciantes que puxaram a corda errada, e espatifaram-se no chão. – Além disso, você irá saltar comigo.
Era o fim da picada. Um camarada de dois metros de altura encochando suas nádegas não transmitia a ideia de segurança. Fosse um, mil, milhares de saltos realizados, que importava! Um brutamontes atrás de si não fazia parte do plano matrimonial. Mas Fernanda merecia, então Rubens seguiu em frente.
No avião, já devidamente colado ao corpo de Pequinês, em cujo rosto se via um sádico sorriso, Rubens começou a rezar. Tropeçava mentalmente nas frases. Não se entendia com o santo para quem orava. Pensou em algum que zelasse pelos paraquedistas. Nenhum lhe ocorreu. Talvez fosse ele mesmo um santo: São Rubens das Calças Borradas.
Uma vez aberta a porta lateral, um vento gélido e cortante adentrou o avião. As paredes do veículo tremeram, transmitindo as vibrações para o intestino de Rubens. Sentiu-se mais tranquilo quando se recordou do café da manhã, que não fizera. Sem café da manhã, sem fezes.
Sendo a preocupação uma ladra de sua atenção, Rubens não notava a ousadia de sua noiva, cujo corpo estava aderido ao do instrutor europeu. Ela rodopiava seus olhos, sempre que podia. Deparando-se com a caganeira pálida de seu futuro esposo, deprimia-se um pouco. Depois, como se sentisse um calor súbito, vencia a depressão, e agarrava os músculos rijos de Casanova.
— Muito bem. Vou iniciar a contagem, como estudamos lá embaixo. – dizia Pequinês, que, se não gritasse, faria desagradáveis sussurros nos ouvidos de Rubens. – Um…dois…três!
Saltaram todos os quatro. Não houve cordas erroneamente puxadas, nem mortes, exceto pela expressão de falecimento de Rubens. Pousados, ele demorou a se recompor. Precisou da ajuda dos instrutores, Fernanda e um copo de água com açúcar. Tremulava. Tremia muito. Fernanda acariciou-lhe os cabelos. Buscou acalmá-lo; não sem, de intervalo em intervalo, escorregar os olhos para Casanova.
Diga-se o que quiser, porém o covarde postou-se como corajoso. E isso render-lhe-ia, dois meses depois, um contrato de casamento com Fernanda, perante a Deus e aos homens.
Do dia do salto até a data do casamento, Fernanda tornou-se uma assídua paraquedista. Rubens morria de medo que sua mulher despencasse com o paraquedas descalibrado. Desse modo, embora não a acompanhasse nos saltos, e não conhecesse nada sobre essa matéria, conferia cada trava de segurança dos equipamentos de pulo; na zona de salto, porém, Casanova refazia uma distinta averiguação, cuidadosamente e com maior cirurgia.
A assiduidade de Fernanda quanto ao paraquedismo, se bem observada, durou até o dia do casamento. Na manhã da celebração, enquanto Rubens entretinha-se com seu intestino no banheiro, o terremoto Fernanda D’arc resolveu saltar mais uma vez. Pulou do último degrau do altar, onde sequer pisara, e caiu sem paraquedas no colo de Casanova, que nunca uma diarreia sequer sofrera na vida.
Autor: Lucas Vinícius da Rosa