Promíscuo

hell

Tive muitas vezes este pensamento: se ando já desapercebido entre as pessoas, nos restaurantes ou nas ruas, não é porque essencialmente me tornei um deles, mas porque aprendi a vestir demasiado bem sua roupagem infernal. Segurar os talheres nas mãos certas, os cumprimentos aos desagradáveis, a tolerância aos intransigentes, o mesmo pôr do sol às almas desgraçadas e às que possuem graça, lado a lado a pele protegida e a cancerígena, estacionar o carro na vaga que se preenche, e se esvazia, todos os dias, no movimento melancólico dos espaços que foram criados pelo homem para serem celas temporárias de seus pertences.

E ao passo que faço tudo nos conformes, com a delicadeza de atender o pormenor de cada codigozinho inventado, são criadas cinquenta camadas acima de mim que não são realmente eu. Embaixo delas sou desde um desbravador sem fronteiras a um criminoso que, silenciosamente, desfaz as linhas da lã que veste, sedento por um conhecimento que não seja ingenuo como o da criança, empoeirado como o dos livros envernizados ou rouco como o da fala dos velhos.

Cinquenta camadas abaixo do inferno, desta roupagem infernal, sob as temperaturas elevadíssimas, em que me disponho confortavelmente a empinar a pena que descostura, em gesto sucessivo a medir a febre dos pensamentos, é onde derreto tudo aquilo que vem de fora, para que não me polua o amor que possuo por dentro.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa