Meu grito tem se transformado num sussurro. Posso me comunicar com todas as instâncias desse modo, ao mesmo tempo em que escuto minha própria voz. Meu pensamento é meu castiçal com muitas velas, não vejo porque as deveria assoprar para me encontrar em escuridão. Desse modo, assiduamente atento aos enigmas dolorosos da existência, coloquei-me a caminhar.
Vejo este prédio, à minha frente, reformado na época da ditadura ou em qualquer momento político em que se arrancavam unhas por verdades falsas. As paredes, contudo, conservam suas rachaduras que denunciam a idade antiga da edificação. São cicatrizes no meio da cidade. As pessoas que passam pela portaria — sem porteiro –, sequer notam a fragmentação daqueles tijolos. Como poder-se-ia afirmar sobre elas que conhecem seu próprio coração danificado. Decerto sentem o efeito mais externo da emoção, e choram por isso. Mas e quanto às causas da arritmia?
A humanidade me parece um grande mausoléu, por vezes. Saio à rua, vejo milhares de pessoas, e não encontro nada além de sacos de ossos entornados por carne vermelha. Porém, quando me aproximo mais, sem a licença para tal, sou chocado por tudo aquilo que arregaça meus pensamentos: vida.
Ali na esquina, vista pela minha janela, uma criança se coloca de cócoras, encostada à parede. Lentamente, desliza para baixo. Não chora. Não pede. Não com palavras, pelo menos. Ele vê que eu a vejo, do alto, e seus olhos me entristecem tanto à distância. Retrocedo um pé para trás. Subtraio-me de seu campo de visão. Então caminho retrógrado outra vez. E outro passo. Até que atinjo a parede. Me encosto nela. Eu não choro. Não peço. Não com palavras, pelo menos. Estou deslizado para baixo.
Um dia, ela chegou para mim e disse, embriagada de amor.
– Você é brilhante. – e me de um beijo com lábios cortantes da mais sanguínea satisfação.
Ah, e quantas vezes tive de me apegar nesta única frase para não me sentir medíocre. Para fingir que não sou um soldado em uma guerra. Dissimular meus sentimentos coléricos, irascíveis, indomáveis. Enterro meu fuzil, sem saber que restam munições nele.
O Instituto da Morte trouxe um funcionário para me interrogar. Perguntou-me se eu me arrependia de algo. Ora, é claro que arrependo. As cicatrizes que se espalham pelo corpo são o vestígio dos meus erros mais estimáveis. A vida só se faz pelo erro. Não há doutores diplomados neste mundo que possam me refutar. Traga-me a lógica, a astúcia da proposição inversa, a falácia ontológica da negação, ainda assim eu direi: o erro é a verdade.
Lembro-me como se fosse ontem dela no balanço. Seus cabelos morenos esvoaçantes, não resistentes ao vento. Seu sorriso no rosto como se o balanço fosse a coisa mais importante do mundo. Até hoje desejo que ao lado dela haja uma vaga, na qual eu possa me colocar e ser assim inocente. O vento machuca as faces, mas não todas. Eu mesmo danço em vendavais. Sabe, quando todos estão correndo pelas suas vidas, eu fico ali, com os braços para o alto. Pareço um louco. Danço sem o propósito de me salvar. E nisto encontro a própria salvação.
Minha persona desgrudou minha máscara. Quando tirei este aparato carnavalesco de mim, meu rosto ardia em carne viva. Fui ao espelho. E vi a imagem mais bela possível. Ali havia todas as mentiras, como cancros em meus poros, estampadas e pertencentes a mim. Coloquei uns óculos escuros e sai pelas ruas. Quis dançar novamente, mas não como no parágrafo anterior. A dança era ainda mais bela. Eu havia, pela minha imagem mais sincera, me drogado pela desilusão do espírito.
Aqueles assuntos mais intocáveis são os que mais me interessam. Isso significa que, mesmo sem lhe conhecer, já me entretenho com suas particularidades. Junto com os meus vícios específicos, os seus compõem uma sublima ópera de Mozart — o garoto mais saltitante da Europa. Como ele, se houver silêncio, e os teatros ficarem vazios, eu estarei morto ao passo que minhas palavras estarão extremamente vivaz. As melhores criações são atemporais. Como contar o tempo do que não foi cronometrado?
Teve um dia, não me lembro certamente qual deles, sendo eles poucos para um velho e muitos para minha idade não mensurada, em que comecei a abraçar as pessoas como se fosse morrer em seguida. Foi uma experiência incrível. Tanto que mantive o hábito. Não o de morrer. Mas o de abraçar. Sinta-se, assim sendo, abraçado pelas minhas palavras que não desejam morrer, ainda que eu o faça inevitavelmente não sei quando. Nos vemos lá embaixo, onde os poetas recitam para a terra seus versos mais íntimos, e as traças são os leitores mais alfabetizados.
Autor: Lucas Vinícius da Rosa