O passageiro inumerável

Atlas-Shrugged-Walking

O funcionário da empresa viária tinha um olhar apagado, como a cor de sua gravata. Pediu-me o documento, verificou-o rapidamente, limpando o suor da testa e acrescentou:

— Tenha uma boa viagem, Sr. Chinaski.

Entrei no ônibus e sentei-me. Sem sentir qualquer saudade nos olhos, como faziam-no as pessoas através do vidro. Mesmo o estofado da poltrona, recoberta por uma capa branca manchada ou suja pelo tempo, parecia-me opaco às costas, sendo-me indiferente à postura. Era certo que a ausência daquelas sensações, tão honestas, tristes e doces aos outros, centímetros distantes de mim, não me maltratava como teria feito em outros tempos.

Sem esforço, ainda imóvel, estilhaços de minha memória logo se ajuntaram; dei-me conta que não pertencia a lugar algum senão ao Universo e ao que há de implacável na vida. Conforme aqueles corpos carnudos, desconcertados procuravam por suas poltronas, comparando o número do bilhete à plaqueta acima do assento, indicavam tão só buscar um lugar à janela, ao sol de si mesmos; tal qual quando um adolescente adentra os portões da Universidade pela primeira vez, virgem e ileso, acreditando que ali haverá uma definição acertada, finalmente, do sempre confuso e falho ser humano.

A viagem, portanto, para mim, não passava de uma troca de lugares e personagens — com destaque para uma adorável jovem que chamou-me a atenção por cinco minutos, fazendo-me parecer estar na obra de José de Alencar; o encanto de romantismo, contudo, quebrou-se muito rápido, logo eu tendo constatado que em cada parada uma nova mulher iria subir, outra descer. Desse modo, o grande diferencial de minha jornada vislumbrante era o de poder atear fogo no bilhete, a qualquer instante; sentar-me em qualquer poltrona e guiar-me para indefinido destino. “Chinaski é um poeta verdadeiramente incendiário“, concluí.

Como a Atlas, no mito grego, pesou-se-lhe nos ombros a Terra, pelo rastro do passado coagulavam pesados torrões de sal nas faces de meus companheiros de jornada. Assim, como um Atlas que larga o que tem às costas, eu soltava de uma vez por todas o peso do mundo no chão. E que ele quicasse como uma bola de gude gigantesca em descida acentuada, atropelando pela frente os ilustres guias de viagem e confeccionadores de mapas. Por que, afinal de contas, quantos milhões de tipógrafos não se graduam diariamente, como brotos de falsas orquídeas em canteiros lodosos?

Autor: Lucas Vinícius da Rosa