Lembro-me de sua perna direita menor que a esquerda. Mas ainda assim não mancava. Abria o portão todos os dias para os transeutes do condomínio. Nunca tive apreço maior ou menor por ele, até que soube da sua morte. Ela seria antes notada como uma ausência no serviço, e depois como uma lástima da existência. Fui interrompido em meu passo por seu companheiro de trabalho, e tudo leva a crer que também amigo de longa data.
– Ele morreu. É muito triste para a gente. – ele narrava melacolicamente, em palavras demoradas, a ausência recente do que sempre fora uma companhia de finais de tarde.
Um porteiro não conseguia, em sua totalidade de emoção, conceber como as portas da vida haviam se aberto para a morte. A voz pegajosa não deu conta de assimilar a tragédia que se lhe empregava. As comédias, tão corriqueiras em brincadeiras do cotidiano, haviam se dissipado, e as próprias lágrimas regavam flores num cemitério.
Foi assim que me percebi humano. Senti a falta de uma pessoa que apenas superficialmente conhecia. Hoje, olhando pela janela, debruçado no parapeito, lembrei da figura daquele que tinha a perna encurtada, mas não mancava. Recordei-me, inclusive, das roupas que vestia, e da fisionomia gentil que cumprimentava, antes de ter a ciência de que, na fila do hospital, sua perna iria padecer de uma trombose inevitável e incólume. Fechei a janela, e depois a cortina. O espetáculo remetia-me a um outro ato — talvez para a cortina para um nascimento.
Autor: Lucas Vinícius da Rosa