Gabriela

Eis que, em um sábado de Setembro, eu acordara mais tarde que de costume. Às quatro da tarde, meus poros ainda exalavam o álcool da noite anterior. De qualquer forma, atormentado ou não pela ressaca, eu punha-me a escrever com dificuldades o princípio de uma crônica. Entocado em meu quarto, como um bicho humano com olheiras, as palavras afugentavam-se; escondiam-se também em seu próprio cômodo.

Entretanto, ao cabo da terceira tentativa de escrever um único parágrafo, fui surpreendido por uma voz. Ela ecoava a partir de fora da casa, e soava-me familiar.

— Ô de casa! Comadre? Tem alguém em casa?

Logo tive um estalo. Era minha tia. Ao passo que a voz continuava a investigar o paradeiro de um morador, sobressaltei-me. Quanto mais próximo de mim ela se tornava, maior era meu receio de que minha porta fosse aberta. Seria uma visão do inferno para minha tia, por certo. Um sobrinho com face sepulcral, daquelas que ficamos após uma boa noitada, escrevendo palavras moribundas com um notebook no colo.

Por conseguinte, rapidamente fechei a tampa do computador. Joguei-o desleixadamente para o lado, e me camuflei nas cobertas. Fiz-me de morto, e aguardei.

— Ô comadre! Te acordei, foi? – disse minha tia.

— Imagina, comadre. Eu estava apenas tirando um cochilo. – respondeu minha mãe. Momento em que pude escutá-la levantar-se, no outro quarto. – Como vão as coisas?

Ufa! O despertar materno salvara-me a pele. Ali, na cama, posto como defunto, esperei um pouco mais. Vigiava com atenção sucinta qualquer menção ao meu nome, coisa que traria pessoas ao meu quarto. Eu não via minha tia fazia um bom tempo. Contudo, aquele não era o melhor momento para abraçá-la. Melhor repousar na minha cova, pensei.

— Comadre, essa é minha vizinha, Gabriela. – ouvi ao longe. Ericei meus ouvidos. Gabriela? Essa eu não conhecia.

— Muito prazer, Gabriela. – saudou minha mãe. – Realmente, comadre, sua vizinha é muito bonita.

Dei um pulo na cama, ressuscitado dos mortos! Bonita? Ora essa, inferno! Sabe-se lá como sou curioso com a beleza feminina. Sentei-me, alerta e com ouvidos de morcego.

— Falei tão bem dos meus sobrinhos que, para não passar por mentirosa, tive que trazer Gabriela para conhecê-los, comadre.

Pronto, estava instalado o caos na minha mente.

Levantei e aproximei-me da porta. As mulheres pareciam conversar na sala. Hesitei por um instante. Não muito, entretanto. Minha curiosidade era maior que minha hesitação. Assim sendo, lentamente, abri a porta. Um pequeno vão surgiu.

Pelo pequena abertura, pude espiar lá na sala um pedaço da figura de Gabriela. Do pouco que vi, muito gostei. Ela era japonesa, ou muito mestiça. Seus cabelos eram negros e longos, sedosos como aqueles das mulheres de propaganda de condicionador. Exceto que nunca vi orientais em rótulos de produtos capilares; ao menos no Brasil. O corpo era formoso, e indicava pouco mais que 18 anos. Ah, Gabriela! Que gata!

Alguns segundos depois, percebi-me com a boca aberta babando em meu pé. Resolvi fechar a porta. Não bastasse minha aparência horripilante daquela tarde, não seria legal ser flagrado em delito de admiração.

Eu precisava de um plano. Gabriela deveria ser conhecida, por obséquio do trabalho cupido de minha tia. Arquitetei: o banheiro ficava próximo do quarto; no entanto, para ir ao banheiro, necessitaria passar pelo corredor; o corredor, por sua vez, estava escancarado para a sala, onde as mulheres estavam. Ora essa, que plano mais arriscado. Aguardei que trocassem de lugar.

Haja paciência. Tive de esperar uma hora! Assim que as mulheres e Gabriela dirigiram-se à cozinha, abri a porta e parti para o banheiro. Todavia, fui astucioso. Empreguei passada silenciosa, como se eu fosse um ladrão com pés macios dentro da minha própria casa. Missão quase cumprida.

Uma vez no banheiro, liguei o chuveiro. Pelado, nu e com a mão no bolso, tratei de lavar todas as partes do corpo. Até atrás das orelhas limpei. Não que Gabriela fosse, ao me cumprimentar, perguntar-me “ei, você lavou atrás das orelhas?”; ainda assim, almejei oferecer a ela o melhor de mim, minha versão mais límpida.

Banho tomado, hora de escovar os dentes. Titubeei. Faltava algo a ser feito antes disso. Ah, o fio dental. Seria um exagero passar fio dental? A dúvida era pertinente. Não se iludam mulheres, homens não passam fio dental. Odiamos ferrenhamente esse fio tão estimado pelos odontologistas. Em verdade, recorremo-lo apenas para tirar fiapos de carne que nos incomodam muito após um bom churrasco. Se você conhece algum homem que utiliza fio dental todos os dias, suspeite. Boa coisa desse ser humano não sairá.

Banho caprichado, 32 dentes escovados, duas orelhas novinhas em folha. Esqueleto renovado. Eu estava pronto para desfilar, triunfante, no corredor que me levaria a cozinha. Porém, lá chegando, as comadres haviam sumido. Para onde fora Gabriela?

Fui até a sala. Ninguém. Nos outros lugares da casa, igualmente nada. Com uma pulga atrás da orelha limpa, em última instância, decidi ir até o portão. Deparei-me com minha mãe, que me olhou com olhar de repúdio.

— Onde já se viu, meu filho, ficar trancafiado no quarto com visitas em casa.

— Cadê a Gabriela? – perguntei, debruçando-me no portão a procura da ninfa oriental.

— Gabriela? HAHA! Você perdeu de conhecer a vizinha da minha comadre, seu bicho do mato. Agora, ajoelha e chora.

Com semblante entristecido, ao longe avistei Gabriela e minha tia caminhado no final da rua. Como era doloroso aquele distanciamento. Sem nem conhecê-la, perdi uma mulher cuja beleza era curadora de qualquer ressaca. E, além disso, era japonesa. Eu nunca estivera dantes com uma japonesa. Meretrizes não contam.

Argh, maldita crônica da minha vida!

Autor: Lucas Vinícius da Rosa