Entediado em percorrer sempre o mesmo percurso, todos os dias, ocorreu-me uma solução para o tédio: escutar a conversa alheia. Certamente, não se trata de hábito dos mais educados. Contudo, é uma falta de educação moderada. Tolerável, por que não? Afinal, se aqueles que são escutados sequer notam tal fenômeno, não há vítimas, nem crime.
Em direção ao trabalho, logo na primeira esquina, passei por um jovem da mesma idade que eu. Não mais que vinte e três anos. Vestia uma calça jeans escura e uma camiseta branca. Na mão esquerda, à altura do ouvido, segurava um aparelho celular. Havia indignação na sua voz. Pensei, num primeiro momento, que na outra ponta estava sua mãe.
— Tá complicado. – ele desabafava. – Eu tô tão por aqui, – e inconscientemente fez um gesto com o dedo, passando-o horizontalmente na garganta – com tudo. Onde já se viu uma coisa dessas. – e fez-se um silêncio temporário. Neste instante, eu já havia passado pelo jovem, mas era ainda audível sua conversa. – Olha, no momento eu só não estou me drogando, porque vou te contar…
Ao que parece eu estava errado, quanto ao fato da conversa do jovem ser com sua mãe. Que filho em sã consciência diria a sua mãe uma frase que envolva drogas. Bem se sabe que a maternidade se assusta com o mundo, especialmente com a quantidade de drogas existente nele. Por certo, se fosse de fato sua mãe na ligação, antes mesmo de terminar a pronúncia de “dro-gan-do”, a velha desconfiaria que seu filho está saindo com Diego Maradona.
Dois quarteirões à frente, eu passava por um ponto de ônibus. Uma cabine metálica pintada de azul. Havia, nele, meia dúzia de pessoas. Agoniadas, eriçavam-se. Curvavam o pescoço na direção da rua, e com impaciência esperavam pela sua lotação.
Mais alguns passos, poucos metros a frente do ponto, tive logo que me conter. Neste caso, rogo pela minha absolvição pelo crime da escuta, uma vez que todos na rua escutavam a conversa das duas bichas. Uma delas estava irada. A outra, em curvatura submissa, procurava por algo na boceta em que carregava, repleta de adornos estranhos ou em formato de flor.
— Como assim você perdeu? – dizia a bicha mais exaltada. – Aposto que deixou lá na casa do seu outro namoradinho, não foi? Escuta aqui, não nasci para ser corno não, meu bem. Sou uma mulher de hombridade, ouviu? – e segurou o braço da outra bicha com força.
— Ai, você está me machucando, Wesley!
— Para de ser fresca, sua bicha. Nem estou te apertando.
— Está sim. – e ameaçou chorar, em plena rua. Depois, finalmente, teve o braço solto.
— Ah, vá embora da minha vida! – e adentrou o shopping center, que ficava muito próximo do ponto de ônibus. À medida que adentrava o local, voltava o pescoço para trás. E gritava. – Não fique aí chorando! Oh, vai perder o ônibus! – e a outra bicha desatou a chorar. – Estou falando, olha o ônibus vindo. Tchau! Vou seguir minha vida, meu amor. – e deu as costas em caráter definitivo, rebolando sua nádegas num shortinho muito menor que seu número original.
Cinco minutos depois da cena do jovem no celular, e outro minuto após o espetáculo das bichas, aconcheguei meus tímpanos na conversa de duas amigas. Ambas loiras. Há de se destacar que eram belas, não vulgares, com pernas expostas até a altura média da coxas. Vestiam-se como princesas encantadas em um castelo urbano. No lugar dos corredores de paredes de pedra, desfilavam sobre saltos altos perante as vitrines, que decerto ilustravam as mais recentes novidades da última moda francesa; ou quem sabe norte-americana, se o modelito favorecesse mais os peitos em detrimento da bunda, que obviamente as americanas esqueceram do outro lado do atlântico, na Grã-Bretanha.
— Ai, amiga, será que ele vai me adicionar no face? – dizia uma delas, olhando freneticamente para a tela do celular, franzindo a testa e contorcendo os lábios.
— Relaxa, amiga, eles sempre adicionam. – e deu uma batidinha no braço da amiga, em sinal de garantia do que falava. Fixava atentamente seu olhos nos produtos das prateleiras. Às vezes tocava na vidraça, como se pudesse transpassá-la, e sentir as bolsas e sapatos na sua mão. – Aí, eu quero. – ela disse, enquanto escorria baba pelo canto dos lábios.
— Ele disse ontem que iria me adicionar assim que entrasse no face. Será que ele está sem Internet? – a outra loira nada respondeu.
Obviamente que, para ouvir tamanho diálogo, eu diminuíra substacialmente meu passo. Para ser sincero, talvez eu estivesse parado, enquanto corria pelo meu rosto um riso quase silencioso.
— Mas ninguém fica sem Internet hoje em dia, não é, amiga? – continuou a loira presa ao celular. – Ele é tão gato. Já mostrei a foto dele? – e apressou-se em procurar o perfil virtual do playboy que conhecera na noite anterior. – Achei! Olha amiga, que partidão… – e tão logo despregou sua cara do celular, percebeu que sua amiga estava em outro mundo. A vitrine seduzia-lhe muito, tanto quanto o fazia o futuro noivo em relação a sua amiga. – Está me ouvindo, amiga? – então a outra despertou, em sobressalto.
— Ai, desculpa amiga, não estava escutando. Tem essa bolsa de strass maravilhosa piscando para mim. Último lançamento da Dior. Ai, amiga, ela tem que ser minha. – a outra sorriu, e disse.
— E ele tem que ser meu.
Mudo, despedi-me das duas patricinhas. Prossegui em direção ao trabalho, descrente quanto a outra conversa tão hilária quanto as anteriores. Enganado eu!
Quase ao alcance do meu destino, duas velhinhas assentavam-se num banco de madeira, abaixo de duas altas árvores. Em frente a elas, havia uma farmácia, cujo letreiro dizia “Drogaria do idoso, onde não existe idade para se medicar”.
Assim que me aproximei das, até então, respeitosas senhoras, destampei novamente os ouvidos.
— Como assim ele não dá mais no couro, Janete?
— Não dá.
— Mas dá porque não quer, ou porque não sobe?
— Não sei muito bem, mas acredito que ele não queira porque não sobe. – e levou as mãos ao alto. – Ou será que ele arrumou outra mais nova que eu? Vi na novela que aquela garota, a Celinha, de apenas dezessete anos, tentou tanto o seu Maneca, que o velho largou a velha, e ficou com a Celinha.
— Janete, minha comadre, cá entre nós, não é tão difícil assim ser mais novo que nós. – e as velhas gargalharam jovialmente. – Mas não se preocupe, hoje mesmo você pode sanar suas dúvidas.
— Como?
— Ali, do outro lado da rua, está a sua solução. – e a outra velha abriu os braços, confusa. – Na farmácia, comadre. O mundo hoje está muito moderno. A medicina avançou. Vá lá e peça a eles a pílula azul que faz defunto levantar. Eles vão saber qual remédio é.
— Remédio? Mais meu Juvenal não está doente. Só não dá no couro.
— Comadre, não dar no couro e estar doente são na prática a mesma coisa. Agora vá lá e peça essa pílula, que seu Juvenal hoje ou se apresenta, ou morre de vez.
Sendo impossível não rir, balancei os ombros e gargalhei sonoramente. As senhoras notaram terem sido escutadas. Porém, engraçadamente, não se constrangeram. Pelo contrário. Uma delas sorriu para mim, e disse.
— Não se preocupe, querido, você tem ainda muito tempo até se tornar o meu Juvenal.
Fechei minha boca imediatamente, guardando meus dentes. Maldita velha profeta, cuja profecia tornou-se minha impotência inevitável. “Melhor ir para o trabalho, e parar com essa mania de escutar os outros na rua”, concluí.
Autor: Lucas Vinícius da Rosa