Escrevo mais em uma frase do que muitos não registram em uma vida, porque meu pai ensinou-me, sem saber, a ser poeta.

Contradição

Prezado progenitor,

sem aviso, como são anunciados os sentimentos na televisão, notei que meu vazio interior era mais vazio sem a figura paterna. O extermínio, inevitável ao espírito livre, das noções de autoridade, hierarquia, podem ter lhe machucado, meu pai. Mas viera disso a grande ideia da sua figura mais humana. Diferentemente dos padrões que estabelecem elogios comuns e ordinários aos pais, em seu dia cunhado em cultura automática, eu lhe digo que em seu seio há presença amiga.

Recordo-me vivamente, como queima brasa em fogo recente, de palestra nossa, tida recentemente. Seus cabelos esvoaçavam lentamente, conforme a janela se abria para permitir o vento fazer entrada. E sua esposa, minha mãe, no fogão conversava com seu hábito comum em sentir-se bem na presença de sua família. Suas mãos, no sofá, estavam sobre as coxas. Mão direita em perna direita; esquerda, na esquerda. Sua camisa era polo, e tinha listras que lembram as listras do meu coração acidentado. Sua voz era não imperativa. Não poderia jamais voltar a ser. Um filho que assassina a submissão, ama seu pai na mesma altura.

E o tempo, naquela tarde específica, foi passando distintamente dos outros dias infernais de minha cabeça. Eu, ciente de todo o desproposito de viver, sabia achar, ainda assim, no seu temperamento a aceitação do tédio dos dias. Conversávamos sobre economia, política, história, antropologia, poesia, filosofia, psicologia, matemática, biologia, e a ciência do amar. Não sei se muitos pais falam sobre assuntos tão distintos quanto ousamos afrontar, em intensa contradição, claro, mas tive ração precoce de leitura violentamente arrebatadora para o pensamento. Fruto da circunstância sua e de minha mãe. Você, sem saber, como pai, ou melhor, como pessoa que de fato é, trouxe a minha inquietude mais rara: identificar os sentimentos. Percebo que isso era característica sua, antes de minha.

Tenho com recorrência uma sensação de queda tremenda. De declínio. Assim me elevo, liberto-me de tudo que estrangula -me as asas; e ainda assim lhe lembro com estima de quem me empurrou à sua maneira em voo. E pai, nesses momentos eu lembro o quanto o orvalho faz gelar a pétala. Então vem-me à mente que pulsa vossa presença silenciosa e imaginada. Que, como sustentáculo à flor, me tornou tão pesado quanto a flor, e insistiu em me chamar Lucas Vinícius da Rosa. Rosa, pai. Flor delicada e impávida, no entanto, com força para encantar damas impossíveis, decifrar enigmas obscuros, não enxergar propriedade em corações alheios, mas doar-se com a única virtude de dar sem receber, e encantar com a derme rubra, vermelha de tanto amar, o fato de ser flor.

Quando naquela tarde anoiteceu, eu vi a beleza do seu coração buscar adaptar-se ao meu. Não concordo com este movimento. Mas sinto-lo inevitável pelo amor que jamais saberei compreender. Um vento gelado entrou finalmente pela janela, e forçou-me a fechá-la. Do lado de fora, havia um exército de pessoas que viviam como nós vivemos, exceto que seus sentimentos nunca nos serão revelados. Mas se os fossem, ah, seriam tão intensos quanto os nossos.

Viver é ridículo, absurdo, infundado, e a isso atribuímos significado com limitação; porém, ter-lhe como pai é um preenchimento a sensação do nada. Desse pressuposto em que tudo pode ser sentindo, não há mais a aflição, nem a angústia. Assim lhe enxergo finalmente meu pai: como um homem no meio do deserto, prestes a encontrar um oásis no qual bebericar alguma água. Quando desta água você provou, sua vida nunca mais foi a mesma. Eis a data do fato: 30/10/1989. Meu antídoto lhe cura meu velho, e não inventaram veneno para nossa relação profunda e entre farpas maravilhosas de discussão afirmada.

Assinado: Lucas Vinícius da Rosa.”