Assento-me aqui, confortavelmente em uma cadeira sem estofado, para narrar esta descrição nem dos céus, nem dos infernos. Poderia falar da vizinha Gertrudes, cujo pano de prato está estendido no parapeito da janela. Ali, esquecido pelas almas humanas, aquele pedaço de pano nunca foi tão refutado. Exceto quando alguém derruba uma taça de vinho na sala, e ele, o pano de prato, faz-se oportuno quase como um objeto de outro mundo.
Assim também me sinto em relação às pessoas. Não que sejam panos de prato. Naturalmente. Mas é que dia desses, estava eu a andar por aí. E topei-me com uma pessoa que, de maneira alguma, poderia ser aquela que salvar-me-ia a vida. Para lhe cumprimentar, cessei o passo. E, interrompido, fui quase atropelado pelo caminhão de lixo que andava em velocidade maior à de minha distração.
Nunca se sabe quem lhe irá salvar. Pode ser um desconhecido qualquer na rua. A morte, que é inevitável para todos, pára para ser remediada por esses acasos sem explicação. Puxaram-me pelo braço. Um estranho, ou um samaritano. Fora tudo tão rápido que nem classificar pude o indivíduo.
Mas partamos para assuntos mais íntimos, e mais difíceis. Refiro-me à Gertudres, a vizinha que nunca teve um homem em sua vida. Sempre estive a lhe observar. Seu romantismo parecia-se com flores mortas num jardim que desejava florescer. Ela não havia tido o peito palpitar como fazem as jovens. Sua adolescência fora, praticamente, uma vida num colégio recatado, em cujo as paixões são sepultadas antes mesmo de nascerem.
Tinha o cabelo adornado, como se chamasse a atenção. Até retocava com a ponta dos dedos os cachos indecentes. Ela não sabia que narradores vivos falavam sobre sentimentos mortos.
Ela conheceu um homem, no passado. Apaixonou-se, após mazelas de uma vida que dizia: não há paixão. Ainda assim, pela impulsividade que traz a ação, e em troca o remorso, ela jogou-se no que se chamaria de piscina das tentativas. Com várias raias, uns competiam, outros maltratavam-se pelas próprias braçadas. No final das contas, dada a bandeirada que marca o fim do torneio, seu braço finalmente alcançou a borda. E ela amou.
Vejo ainda daqui ela a procurar tal piscina na qual mergulhara e eu, da janela do quarto andar em que escrevo, sinto estremecer o amor do qual já desacreditei. Mas narro efusivamente. Com profundidade invado esses corações. De modo que ela persistiu em amar.
Passaram-se dois dias, desde que o pedaço de pano velho estava esquecido no parapeito de sua janela. E seu sorriso não se subtraía do rosto. Vi que os jovens têm o ímpeto da tentativa, os adultos, a falência da persistência. Gertrudes, no entanto, embora visse tal constatação em sua sobrinha, mantinha nela o sopro da vida; e consequentemente do engano. Certo dia encontraria alguém, como com ela se sucedeu em sua época. Corações despedaçados, como são todos os que vejo, tendem a se aproximar.
Minha narrativa, embora não queira se despedir, faz aqui seu número de retirada. A mulher que citei não se satisfez, amou tardiamente, não pode se recuperar. Sua sobrinha ainda não envelhecera; ainda assim cumpriria os rituais humanos da emoção. E é apenas isto. Não há o que se fazer em relação a realidade da vida. Machado de Assis, desde criança, ensinou-me tal lição. Hoje, menos arisco e mais fragilizado, vejo que a Academia Brasileira de Letras não se firmou em vão. Ah, os órfãos de sofrimento nunca irão me ler. Mazelas de se escrever pelo erro, e pela intimidade.
Autor: Lucas Vinícius da Rosa