Embaixo do braço, ela carregava uma lancheira vermelha. Vinha vazia, exceto por meros pedaços de pão seco, restantes de uma refeição inferior à sua necessidade. Seu rostinho era tapado por uma burca de cor escurecida, cuidadosamente enrolada em torno da cabeça. A vasta burca descia até os tornozelos. Os pés eram separados do chão apenas por uma fina película de couro, a qual conferia conforto algum, porém obedecia aos costumes islâmicos. Nas costas pendurava uma mochila mais pesada que o adequado para crianças de sua idade. Ela costumava trazer muitos livros consigo. E sonhava em mudar a realidade podre, e fúnebre, em que vivia; tornar-se presidente; aniquilar o preconceito que impede até as coisas corriqueiras, como mulheres dirigirem veículos livres da doença do preconceito; derrubar todas as sanções religiosas ou legislativas; desarmar todos os arsenais bélicos com sua frágil humanidade.
Não havia um brasão sequer da escola em suas vestes. Ela, todavia, sustentava mentalmente a insígnia do conhecimento. Com doze anos de idade, enxergava com plenitude a necessidade vital da educação. Os livros que lia exprimiam as guerras, e resultavam em sangue se torcidas suas páginas. O punhal humano perfura primeiro as culturas ínfimas, depois as medíocres, e finalmente as letradas.
A saída da escola tumultuava-se pela agitação comum aos pequenos. O sol apino marcava meio-dia. A criança se perdia entre muitas outras que, apressadas, corriam em direção às vans brancas estacionadas perante a fachada. Uns cutucavam os amigos, com beliscões reais de joguetes imaginários. Outros tripudiavam, ou brincavam as presepadas inocentes da infância. Ela, no entanto, sentia no peito uma dor inevitável, e pensava: “por que meu país está em guerra? Vi ontem mesmo meu vizinho ser atingido por uma bala que veio de lugar nenhum. Ou melhor, sei sim de onde veio tal bala. Veio do grupo radical separatista, que é inimigo do Estado. Ou teriam sido as próprias forças do Estado, em retaliação ao grupo radical separatista? Devo dar graças a Alá por ter doze anos de idade vividos. Nesta instabilidade que vejo, com tanto sangue a afogar o desjejum dos fieis, fico admirada em ter completada uma dúzia de idade”.
Embora a maioria das crianças regressassem para suas casas pelas vans brancas, ela costumava aguardar pelos seus pais, os quais vinham lhe buscar num carro negro. As crianças que passavam por ela eram como vultos. Ultrapassavam sua presença rapidamente. Gritinhos agudos excitavam seus ouvidos. Ainda assim, ela permanecia postada — reflexiva. Não olhava para onde, de praxe, seus pais se estacionavam e firmavam espera. Olhava para si mesma, seu íntimo; e depois para fora.
De repente, num abrir e fechar de olhos, houve uma explosão ensurdecedora. Um estrondo deverás grosseiro, como se saído do martelo de Thor, fez-se escutar em todo o bairro. Acinzentada, a nuvem de fumaça, parecida com as chamas de um vulcão de pequeno porte, tomou conta da escola. Estilhaços foram disparados para todos os lados. Não obstante o barulho, que trouxe a todos a reação inútil em fugir, um fragmento de vidro penetrou a barriga da criança ao lado desta de que se fala. O pequeno ser despencou na hora. Foram caindo rapidamente todos ao redor. Ela, por sua vez, agarrou-se à lancheira. Pensou se nunca mais voltaria a lanchar, ou repudiar o vermelho do recipiente, o qual sempre desejara ser rosa. Mesmo a possibilidade de não passar fome outra vez lhe assustou.
Disparos agudos foram ouvidos, cruzando o ar em direções indefiníveis e traiçoeiras. Ela olhou à direita; muitos mortos; em seguida, à esquerda, e outra pilha de crianças defuntas havia, com a carne ainda quente, contudo sem mais respirar. A cena era um massacre sobre um cenário demolido. Nunca ela havia sentido tamanho cheiro de sangue, tão coagulado e horripilante quanto a intenção dos sacrifícios humanos.
Em meio à poeira dos corpos, ela tirou sua mochila das costas. Ah, e pesava já muito o peso do mundo, covardemente povoado pelo homem civilizado. Ansiou, portanto, aliviar seus ombros pelo menos do que era físico. Tirou uma alça, depois outra. Colocou a mochila no chão, ao lado de sua colega de escola que jazia estendida na calçada, sobre o traçado de um jogo de amarelinha, agora avermelhado. Quando olhou para a mochila, incapaz de chorar durante o episódio asfixiante, já que seu espírito estava paralisado pela situação, teve um susto. Cravado na parte da frente da mochila, tendo penetrado muito o tecido, e fincado no livro “Guerra e Paz”, de Tolstói – leitura profunda para uma criança de doze anos –, havia um caco de vidro da envergadura de um punho adulto. Arregalou os olhinhos, e viu-se admirada pelos livros terem salvo sua vida, ainda que não a humanidade.
Autor: Lucas Vinícius da Rosa