As ruas pareciam corredores vazios. Sem transeuntes, agiam como passarelas para as frias correntes de vento noturnas. De certo, as pessoas entocavam-se em suas cavernas aquecidas, elogiando uma estação fria, porém com corpos acalentados e protegidos por quatro paredes.
Nesta noite invernosa, a lua se erguia em grande altitude, vigiando, com suas crateras oculares, o vácuo das vielas urbanas.
No centro da cidade, em uma de suas principais ruas, as luzes dos postes possuíam iluminação apática. Não fosse a existência de um ponto de ônibus, situado em um dos lados da via, a rua seria intensamente escura. O ponto, com suas proteções de acrílico a revestir seu formato de cubo, tinha telhado e, em suas laterais, propagandas com pessoas felizes e sem frio.
Próximo à meia-noite, cruzando a esquina, Rafael avistou o ponto de ônibus. Liberou o ar de seus pulmões, aliviado. Poderia enfim retornar para sua casa, mesmo que lá nada o aguardasse.
O frio lhe era demasiado paralisante. Machucava sua epiderme jovem e irresponsável. Em um embate contra o gelo atmosférico que maltratava, Rafael alcançou o ponto. Na ponta dos pés, olhou para os lados, sem encontrar no horizonte a figura de um ônibus. Ali permaneceu, ereto, esperando.
— Está uma noite muito fria hoje, não é mesmo? – disse uma voz estranha, proveniente da extremidade de um banco amarelo, de metal, inserido dentro do cubículo.
Rafael se sobressaltou. Concentrado em regressar para casa, não percebera a presença de outro homem naquele lugar. Assim que encarou-lhe, o jovem surpreendeu-se com as feições que via. O homem de voz estranha aparentava mais que quarenta anos. Escorrendo pela parte baixa do rosto, estendia-se uma longa barba grisalha com porções de tonalidade negra. A pele, com escarificações trazidas pela exposição exagerada ao frio, não tinha boa consistência. E o cabelo era um conjunto de fios desbotados; também desbotadas, e adicionalmente esfarrapadas, as vestes do homem o tornavam maltrapilho.
Precavido, ciente dos perigos da noite, Rafael ignorou sua impressão sobre o homem, e respondeu secamente.
— Está sim.
— Esse frio…
— Olha senhor, não possuo dinheiro comigo. Não posso te ajudar, estou só com a passagem do ônibus. – Rafael balbuciou, mas sem cruzar seus olhos com os do mendigo.
— Por favor, senhor não. E também não quero seu dinheiro, meu jovem.
A situação perturbava cada vez mais Rafael, que ligara seu estado de alerta diante do inoportunismo da conversa. Ele aplicava o frívolo julgamento de que os mendigos nada têm a oferecer. Em tudo são pedintes. Como se itens materiais fossem o único legado aceitável passado de um homem para outro; como se não houvesse dádiva na indigência.
O mendigo prosseguiu.
— Peço que não se assuste. Mesmo porque, embora não pareça, tenho um filho mais ou menos da sua idade, e mal algum jamais causei a ele, a não ser pela minha ausência.
Rafael, sumariamente, deu de ombros. Demonstrava indiferença às palavras do homem paupérrimo. Avaliava não ser aquela uma boa hora para biografias desgraçadas, muito menos para um reencenamento de Forrest Gump.
— Estou apenas esperando o ônibus, amigo.
— E você sabe para onde vai? – indagou o indigente.
— Sei sim, obrigado.
— Não me agradeça jovem, pelo menos não ainda. Pergunto qual seu destino porque passei anos errando enquanto escolhia o meu. Não fui sempre assim maltrapilho. Nem sempre perambulei à esmo pelas ruas, caçando meu alimento em sacos de lixo ou restos de prato em lanchonetes de esquina. Saiba que tive carreira profissional, uma esposa e um filho.
— Se você teve carreira e filho, por que está aqui? – Rafael franziu a testa, em sinal de hesitação.
— Tomei alguns ônibus errados, que me levaram a estações nem sempre felizes. – Rafael torceu ainda mais sua expressão. Aquele homem falava bem demais para um morador de rua. – Na minha infância tive tudo e, como toda criança sincera, eu tinha muitos sonhos. Estudei nos melhores colégios, me educaram com a melhor educação. Passei pelos bancos de honrada universidade e tive ótimos empregos. Ótimos financeiramente, porque não me faziam feliz. Eu queria os melhores cargos, mesmo que não me trouxesse satisfação fazer o trabalho do melhor cargo. De qualquer forma, eu estava fazendo valer minha esmerada educação, que era o caminho para que eu enriquecesse.
— E você conseguiu?
— Se consegui atingir meus objetivos? Sim, os atingi. Entrei em ônibus cujo transporte era cinco estrelas. Fui muitas vezes vislumbrado pela pompa do carro transportador e, quando fui ver, desemboquei em lugares solitários. Mas eu tinha objetivos, isso eu tinha. Ainda mais que isso, como tradicional homem de negócios, eu tinha metas.
— Mas o que o senhor…
— Senhor não, por favor. Me chamo Heitor.
— Está bem. Heitor. O que deu errado no meio do caminho? Você não alcançou o que havia previsto?
— Cumpri minhas metas, jovem. Porém as realizei ao preço de suplantar meus sonhos, aqueles que começaram a me encantar quando ainda criança. Naturalmente que uma vez adulto eu teria sonhos de adultos. Eu só não imaginava que crescer fosse me fazer parar de sonhar.
Um jovem e um mendigo compartilhavam o sofrimento trazido pela baixa temperatura. No entanto, antes que os corpos de ambos suplicassem por calor, os dois estavam envolvidos demais no papo para reivindicar agasalho.
— Você fala muito em sonhos, Heitor. Sou novo, bastante mais novo que você. Mas digo que neste mundo quem vive de sonhos não coloca arroz e feijão no prato. A vida não admite essa visão romântica sobre as coisas. Por que uma vez tendo atingindo certos objetivos, você não fixou outros novos? – o mendigo ofereceu-lhe um sorriso amarelo, e retorquiu.
— Fiz isso, estabelecer objetivos após objetivos, por muito tempo. Muito tempo mesmo. Na verdade, fiquei tão obcecado com certas metas que perdi minha família. Afinal família não é meta, nem objetivo, mas puramente amor; família é o que te afasta da morte, afinal é ela quem te traz à vida. Ou seja, hoje estou mais próximo do fim, e por isso te entrego a única coisa que resta comigo: o aprendizado frente às más experiências.
— E qual seria esse aprendizado que você se recusou a seguir, Heitor?
Ainda assentado no banco metálico amarelo, Heitor continuou a oferecer seu tesouro a Rafael, para que o mesmo não vivesse uma vida de esmolas.
— Seja senhor dos seus destinos, e não escravo das mais confortáveis estradas. Seus sonhos são o seu mapa. Saiba, finalmente, que serpentes nem sempre atacam, porém humanos podem morder. Se preciso, enrole uma serpente em seu pescoço e impeça que humanos, ou você mesmo, envenenem seus sonhos.
O jovem esbranquiçou sua face, estagnado. Procurou inutilmente algo que complementasse a fala derradeira de Heitor. Nada achou.
À meia-noite em ponto surgiu um ônibus azul e branco, longínquo, no final da rua. Quando se aproximou dos conversadores da madrugada, o carro revelou, gravado em sua lataria, o número 30101989. As cores e o número do veículo verteram dúvida em Rafael. Ele não reconhecia aquela linha de transporte.
O ônibus parou ao lado dos dois homens. E um barulho de engrenagens ecoou pelos parafusos da porta, que se abriu.
— Heitor, você já viu esse ônibus antes? Não reconheço essa linha.
— Reconheço sim, meu jovem. – e o mendigo emitiu um último riso de profunda riqueza. – Hoje é seu dia de sorte. Este ônibus pode te levar para onde você quiser. – disse, apontando para o ônibus vazio, exceto pelo motorista. – Eu chamo essa de a linha dos sonhos.
Autor: Lucas Vinícius da Rosa